Oi gente,
Apesar
dessa reportagem ser antiga posto ela aqui, pois achei muito interessante a
iniciativa do Dr. Wilson Gonzaga com os moradores de rua.
Pra quem
não sabia assim como eu, Gonzaga integrou o grupo multidisciplinar do Conad
(Conselho Nacional Antidrogas) que reavaliou a bebida em diferentes enfoques e
contextos. Esse trabalho resultou em uma regulamentação sancionada pelo então
presidente Lula em 2010, documento que garante o direito do uso religioso do
chá.
Bacana neh
gente?!
Ao final
coloco também o vídeo de sua participação no Programa do Jô.
Beijos no
coração
Namastê.
Wilson Gonzaga (*)
Apresentação na mesa redonda “Os usos da Ayahuasca: aspectos
religiosos, antropológicos e científicos”. Sexto Movimento pela Vida, Centro de
Ensino Médio, Palmas, 25 a 28 de maio de 2005 (**).
Bom dia. Minha contribuição nessa mesa será falar sobre o
povo da rua. como usamos a Hoasca para a recuperação de moradores de rua. Mas
antes de começar propriamente, quero externar minha gratidão pelo convite de
participar dessa mesa. Hoje pela manhã, quando a gente estava saindo do hotel e
vindo para cá, aconteceu uma coisa engraçada, simpática. Nós entramos na van e
todos que estavam lá eram da mesa. Aí, a Bia com esse jeito menina dela começou
a exclamar: “Oba! Agora é a nossa festa! Que legal! Chegou nossa vez! Vamos
reunir o povo ayahuasqueiro!”. E estou me sentindo meio assim. [risadas]. Bom,
não é? Fiquei sabendo que iria encontrar com o Helinho [Hélio Gonçalves], que
faz parte da minha história também. Quando comecei lá pelos idos de 82, vim a
conhecer um Mestre da União do Vegetal que ainda hoje reverencio, com muito
respeito, o Bartolomeu e na época o Hélio também vivia aqui com o Mestre
Bartolomeu. Fizemos uma viagem juntos para a floresta, foi memorável. Está
gravado cena por cena no meu coração.
Passei uma época, anos importantes da minha vida, na União
do Vegetal. Cheguei a ser Mestre lá e é um lugar por onde nutro uma grande
simpatia.
A associação que faço parte se chama ABLUSA, Associação
Beneficente Luz de Salomão. Continuo seguindo os mesmos mestres, Salomão,
Mestre Gabriel, mas fiquei um tempo sem beber o chá. Estava mais envolvido com
essa luta da espiritualidade e da liberdade social, que foram minhas bandeiras
durante a vida inteira e ainda são, mas comecei a sentir falta realmente de me
engajar novamente em um movimento religioso e espiritual, vamos dizer assim. Eu
tinha um grupo que trabalhava na rua que começou no consultório. Como fui
apresentado aqui, sou psiquiatra. Numa certa época, começaram a aparecer muitas
pessoas com depressão no meu consultório. Então nós criamos um projeto que
tinha uma brincadeira com as palavras, trocar o “doer” pelo “doar”: Pegávamos
aquelas pessoas deprimidas e íamos para o centro de São Paulo levar arte para
moradores de rua. Levar arte de maneira geral: Desenho, canto, teatro… Tudo
começou assim, com um grupo de pacientes. A coisa foi andando, evoluindo,
crescendo, a brincadeira foi tomando gosto. Naquela época, tinha parado de
beber o vegetal na União do Vegetal e comecei a beber de novo por minha conta,
sozinho. Eu e minha companheira. Tinha ficado dois anos sem beber o chá, e aí
fui lembrando de novo…. Tenho vinte e três anos de hoasqueiro, sendo dois
desses sem beber, logo que saí da União do Vegetal. Quando bebi de volta falei:
“Nossa, como é que fiquei sem beber esse chá?!”. Os hoasqueiros aqui sabem do
que estou falando. Quando agente fica um tempo sem beber e volta, fala: “Como é
que posso viver sem isso? Que lucidez! Quanta ficha! Como sou burro sem isso!”.
Uma vez um amigo psiquiatra me perguntou: “Isso é coisa de maluco, não? Não
preciso de chá nenhum para falar com Deus!”, e então falei para ele: “Eu também
não, falo com Deus toda hora, agora para Ele falar comigo, ou pelo menos para
entender o que Ele fala preciso beber o chá”. [risadas] Falo com Ele toda hora,
aliás, falo cada besteira… [Aplausos].
Bom, o fato é que bebi de novo, foi um presente de um amigo,
um irmão daimista que me deu uma garrafa de daime. Bebi com a minha mulher e
lembrei quem era e o que tinha que fazer – estava “dormindo”! E como já estava
com esse trabalho na rua… A gente sabe, quando a gente bebe e recebe isso
dentro da Força sabemos – ainda que fique meio esquisito dizer: “Recebi uma
mensagem para montar esse trabalho”, mas recebi mesmo! [risadas] É verdade. Não
tem esse caráter assim solene porque é simples, porque quando Deus fala com a
gente é muito simples mesmo. Fala assim na boa mesmo. E aí nós começamos a nos
juntar com um grupo de pioneiros que chamo os “carregadores de piano” , aqueles
“bandeirantes”, sabe? Tem gente de tudo quanto é tipo, gosto daquele tipo de
gente que desbrava caminhos, que mete a cabeça, é um tipo de tribo da qual faço
parte. Junto com mais meia dúzia de “malucos” desse jeito nós começamos a
trazer a espiritualidade através hoasca para moradores de rua.
A idéia de uma pessoa que tem um padrão vibratório de
obscuridade, de sujeira, de miséria na acepção mais ampla da palavra, porque
lhe falta tudo, inclusive a dignidade, receber um instrumento como a Hoasca,
que é de um alto grau vibratório, é algo muito interessante. Já tinha sido
durante anos psiquiatra de usuários de drogas, então achava que estava pronto.
Quando cheguei na rua, pude ver a beleza do trabalho que tinha para ser feito
ali. Trazer pessoas que vivem na mais alta ou na mais baixa escuridão para a
luz, para a consciência, para o resgate da dignidade da vida. Nesses anos todos
de militância na pesquisa do ser humano, não tinha achado nada mais eficiente
do que esse veículo, essa ferramenta, sobre a qual estamos conversando hoje aqui,
a Hoasca. Não tinha achado nada mais eficiente para colocar uma pessoa em
contato com ele mesmo e ao mesmo tempo em contato com o sagrado do que esse
chá. Mas não é só o chá. Vocês ouviram um pouco aqui, vão ouvir mais, que o
contexto ritualístico é muito importante. Porque não é só beber chá, o chá é um
veículo. O veículo sem um piloto não leva a lugar nenhum; pelo contrário, posso
dar até uma Ferrari na mão de uma pessoa, mas se ela não sabe dirigir não sai
da primeira marcha e ainda diz: “Que amarrado esse carrinho vermelho que você
me deu, né?!”, e a pessoa está com uma Ferrari na mão. Percebi que não
adiantava simplesmente dar o chá para estas pessoas. Assim como tinha aprendido
na União do Vegetal, isso tinha que ser feito dentro de um contexto ritualístico,
sério, e bem fundamentado. E me fiz valer daquilo que tinha aprendido em mais
de doze anos dentro do ritual União do Vegetal.
Como nós acabamos lidando com uma população muito
específica, o morador de rua, de repente comecei a receber certas chamadas,
ícaros, hinos – cada tradição tem um nome, da tradição de onde venho são as
‘chamadas’, para situações específicas. Muito bonitas e muito fortes. Uma
experiência muito interessante que até então não tinha tido, pois até então
tinha estudado as chamadas que o Mestre Gabriel e os Mestres antigos que tinham
convivido com o Mestre tinham recebido. De repente, passei a receber
diretamente essas chamadas, numa experiência fantástica! Porque não passa pelo
ego, pela invencionice, pela composição. Passa por uma coisa que vem de dentro.
E para um psiquiatra isso é muito parecido com um delírio. “Meu Deus do Céu,
que coisa esquisita, da onde vem vindo essa música? Da onde vem vindo essa
sabedoria?”. E, apesar de estar vindo pela sua boca, a impressão que dá é que
não é tua. Ou que é tua, mas não estava acessível até um minuto atrás. E você
percebe que aquela ferramenta veio exclusivamente para ser usada naquele
momento ou naquela oportunidade, para aquela finalidade – o que a diferencia de
uma coisa do ego, da vontade. Aquilo do ego e da vontade é porque eu quero. A
coisa de receber dentro da força é pela necessidade, porque precisa. E viver
essa experiência, que até então tinha sido teórica para mim. Tudo, tudo que fiz
até agora, que foi feito até agora já valeu. Daqui para frente é só lucro.
Nós estamos com um trabalho ainda no início. Nesse momento,
estamos montando uma clínica de recuperação de dependentes químicos da rua,
junto ao nosso templo em Mogi das Cruzes, no alto da serra, no meio de uma mata
linda, maravilhosa. Esse trabalho passou a ser um filho. Passou a preencher
minha vida de uma maneira muito especial. Hoje sobrevivo como consultor de
empresas, com viagens pelo Brasil inteiro, me sustento. Com isso, pude voltar a
fazer medicina por amor. A cura pelo amor, sem estar envolvido com a energia
monetária. E isto é sem dúvida um privilégio, você poder trabalhar com a cura,
com a espiritualidade, e com o amor sem energia monetária, e esse trabalho me
deu essa oportunidade. Pude voltar a cuidar de pacientes psiquiátricos, mas
sobre uma outra vertente, com uma outra medicina, e com uma outra moeda
permeando essa troca. Esse trabalho tomou uma dimensão especial na minha vida,
é realmente hoje um grande filho, que me ocupa um bocado de tempo.
Temos esse sonho de fazer 360 graus nessa abordagem com o
morador de rua: acolhê-lo, recebê-lo, curá-lo, treiná-lo, inseri-lo, e
despedi-lo. Nós não pretendemos ser mais uma organização assistencialista, mas
sim uma escola de transformação humana. E, junto ao povo da rua, fazer uma
escola de evolução de pessoas como nós que estamos aqui. Houve uma época que a
gente levava sopa nas ruas de São Paulo, e uma vez encontrei um colega meu
trotskquista do tempo de militância política que me falou: “-O que é isso
companheiro? -Você era um grande militante e agora virou assistencialista?”.
Falei: “Claro que não! Essa sopa é só para aglutinar as pessoas, para elas
estarem aqui”. E trabalho com o morador de rua é para aglutinar pessoas como
nós. Para trabalhar o próprio desenvolvimento. E a primeira coisa que falamos
no nosso trabalho é que não pode ter aquele olhar de superioridade, de cima
para baixo, para com o morador de rua. É o olhar do mesmo tamanho. E agradecer
porque estamos tendo uma oportunidade de nos conhecer, através do trabalho com
eles.
Teve um determinado momento que nós passamos um tanto de
apuros, e tive vontade de desistir desse trabalho. Questionei: “O quê que eu
estou fazendo aqui?”, “Porque que não volto para a União do Vegetal, onde só
tenho amigos, a porta está aberta e tal? Porque que não volto para lá e vou
beber o Vegetal com meus irmãos onde comecei e fico aqui perdendo tempo com
essa cambada de cascudos?”. Já tivemos sessões em que o irmão ficou pelado,
gritando e rolando pelo chão. Cada sessão que se meus irmãos da União do
Vegetal soubessem diriam: “Esse cara é doido. Como é que ele faz um negócio
desse?”.
Passei por situações muito delicadas, fui agredido. A pessoa
alucinada, não pelo chá que bebeu, mas pela doença mental que tem dentro dela
de anos e anos na rua, querer reagir àquela luz de uma maneira agressiva e
querer me agredir no meio de uma sessão. E aí, uma chamada aparece e derruba a
pessoa, ela fica sentada no chão, parada e estatelada, e a partir daquela
chamada, que eu mesmo nunca tinha ouvido na vida, a pessoa diz assim: “Daqui
pra frente eu só quero beber da fonte. Chega de beber água suja”. E vira um
ex-morador de rua. Coisas terríveis aconteceram, mas coisas maravilhosas
também. As terríveis existem e viram piadas depois que passam – depois que
acontecem são até engraçadas. Mas, na época, na hora, no momento, é só mesmo
ter muita confiança no Mestre e dizer assim: “Se estou aqui, fazendo isso, é
porque tu me colocaste aqui, então, TVN”. “TVN” é uma técnica de terapia muito
especial, se vocês não conhecem precisam conhcer: TVN é: ‘Te Vira Negão!’
[risadas]…. Dá o teu jeito… Muitas e muitas vezes disse isso para o Mestre:
“Mestre, dá o teu jeito! Não estou podendo, mas algo tem que ser feito!”. E por
incrível que pareça, uma chamada certa, na tonalidade certa, do jeito certo,
coloca ordem no campinho. Mas é preciso ter confiança e coragem.
Uma vez, num trabalho de cura do Daime, ouvi um hino que
achei bem legal, que dizia assim: “E se sair correndo é pior para você”. Achei
aquilo fantástico! Aliás, os hinos do Daime têm cada pérola. É assim, não tem
para onde correr. Chama, pede, deixa o pau torar, e sai do outro lado voando
porque é o seguinte: nós podemos escapar de qualquer situação, podemos escapar
do Mestre, do padrinho, podemos escapar do terapeuta, do chefe, do pai, mas não
podemos escapar de nós mesmos. Aí não dá. Então o chá é também um grande
veículo de encontro consigo mesmo. E é dentro de uma experiência de êxtase como
essa que uma pessoa que vive na rua pode encontrar com Deus do lado de dentro
das suas costelas. E pode então resgatar sua dignidade, reconhecer-se como um
filho do Sol, um filho da Luz, e re-assumir a sua digna missão de ser humano.
Grato.
(Aplausos)
Dr. Wilson Gonzaga
(*) Médico psiquiatra, psicoterapeuta, conferencista, consultor de empresas na área de desenvolvimento humano, diretor do Instituto Hermes de Transformação Humana. Vem há anos trabalhando com empresas privadas e estatais, instituições de ensino, hospitais, treinando pessoal, dando palestras e dirigindo vivências.
Bia Labate
(**) A antropóloga Bia Labate prestou uma consultoria para o Sexto Movimento pela Vida para a organização desta mesa redonda, composta por:
Mediadora: Bia Labate – antropóloga – (SP) (bia_labate@yahoo.com.br)
1. Ovídio Octavio Pamplona Lobato – médico neurologista –
(PA) (ipadma1@ig.com.br)
2. Edmir Oliveira – Dirigente da Barquinha – (DF)
(edmiroliveira@ibest.com.br)
4. Helio Gonçalves – médico e dirigente da UDV – (GO)
(demec@udv.org.br)
3. Wilson Gonzaga – médico psiquiatra e dirigente da ABLUSA
– Associação Beneficente Luz de Salomão – (SP)
(wgonzaga@institutohermes.com.br)
5. Paulo Roberto Souza e Silva – Dirigente do Santo Daime –
(RJ) (ceflusmme@aol.com)
6. Rogério Moacir Cunha – dirigente da Escola de Comunhão da
Ayahuasca Mística Universal (TO) (rogemcunha@yahoo.com.br)
7. Leopardo Yawabane Huni Kuin – estudante do nishi- pae
(ayahuasca) Huni Kuin (Kaxinawá) – (AC/SP) (yawabane@terra.com.br)
Ver mais em:
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/05/mesa-redonda-sobre-ayahuasca-palmas-28.html
http://alto-das-estrelas.blogspot.com/2005/05/mesa-redonda-sobre-ayahuasca-palmas-28.html
http://www.bialabate.net/news/a-hoasca-na-recuperacao-da-dignidade-humana
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