quinta-feira, 23 de março de 2017

3ª. E ÚLTIMA PARTE: OS VÉUS DA MENTE


Os véus da mente

Se não há uma diferença essencial entre a mente de um buddha e a nossa própria mente, por que um buddha tem tantas qualidades atribuídas a ele, e nós não?
A diferença é que em nossas mentes a natureza de buddha está obscurecida por todos os tipos de cobertura.
No nível impuro — isso é na ignorância — cada uma das três facetas da mente pura se torna um dos elementos que constituem a experiência dualista. Para começar, a ignorância sobre a abertura da mente conduz à uma concepção de um sujeito, de um “eu”, de um observador; e a ignorância sobre a claridade essencial conduz à ignorância dos objetos exteriores. É assim que surge a dicotomia sujeito-objeto, eu-outro.
Uma vez que os dois pólos da visão dualista tenham sido estabelecidos, vários relacionamentos se desenvolvem entre eles, que por sua vez motivam diferentes atividades. Os estágios deste processo são constituídos de quatro véus que mascaram a mente pura, a natureza de buddha.
 Eles são: 
1- o véu da ignorância,
2- o véu da tendência básica
3- o véu das aflições mentais 
4- o véu do karma
Eles são consecutivos e estão estruturados um após o outro.
O véu da ignorância

A ignorância sobre a verdadeira natureza da mente, isto é, o simples fato dela não reconhecer o que é realmente, é chamada de ignorância fundamental. É a inabilidade básica da mente condicionada perceber a si mesma. 
Podemos comparar a mente pura, que possui as três
qualidades essenciais, com as águas calmas e transparentes, nas quais  tudo pode ser visto claramente.
 O véu da ignorância é uma falta de inteligência, um tipo de estado nublado, assim como um vaso opaco faz a água perder sua claridade transparente. Tal mente obscurecida perde a experiência da abertura lúcida e se torna ignorante de sua natureza essencial.
Diz-se que a ignorância fundamental é inata, porque ela é inerente à nossa existência; nascemos com ela. 
De fato, ela é o ponto de partida da dualidade, a raiz de todas as ilusões e a fonte de todo sofrimento.
O véu da tendência básica

A mente controlada pela ignorância se engaja em todas as ilusões, entre as quais a mais básica, a raiz de todas as outras ilusões, é o apego dualista em termos de sujeito e objeto.
Quando a mente não conhece a extensão de sua abertura, ao invés de experienciar sem centro ou periferia, percebemos tudo através de um ponto central de referência. Este ponto, o centro que se apropria de todas as experiências, é o observador, o ego-sujeito. É deste modo que a mente, ignorante de sua abertura, produz a experiência delusória de um “eu”.
Ao mesmo tempo, quando a natureza da claridade vai sem ser reconhecida, experienciamos uma sensação de “outro” ao invés da qualidade autoconsciente da mente. Assim, o sujeito-ego distingue coisas que se tornam a qualidade autoconsciente. Assim o sujeito-ego distingue coisas que se tornam objetos externos. Surge a dicotomia do sujeito e do objeto, do “eu” e do outro. As “outras” coisas têm uma forma dual: as aparências do mundo externo e os fenômenos duais.
Esta tendência da mente ser ignorante de sua natureza, e de perceber todas as situações de modo dualista, é o véu da tendência básica. Desta perspectiva, este segundo véu pode ser chamado de véu do apego dualista.
O véu das paixões

Como vimos, a mente ignorante de sua abertura e de sua claridade fica imersa na dualidade. Então, a ignorância da sensitividade da mente dá surgimento a todos os relacionamentos que existem entre os dois pólos da dicotomia sujeito-objeto. No nível puro, a sensitividade é a imediação e a multiplicidade das qualidades iluminadas, mas na ignorância, estas qualidades são substituídas pelas infinitas possibilidades relacionais dualistas. Na ignorância, começamos tomando os objetos externos como sendo coisas reais. Então experienciamos atração aos objetos agradáveis, aversão aos objetos desagradáveis e indiferença aos objetos que parecem neutros
Se um objeto é agradável, queremos possuí-lo. Por outro lado, diante de objetos ou situações desagradáveis, temos uma atitude de rejeição ou fuga. Finalmente, não nos relacionamos com certos objetos ou situações por causa da indiferença ou estagnação mental.
Estes três tipos de relacionamentos — atração, aversão e indiferença— correspondem ao desejo, ao ódio e à ignorância.

Estes são os três venenos mentais primários, as três principais aflições mentais que animam e condicionam a mente habitual.

Na base destes três tipos de relacionamento, outras numerosas aflições mentais ou emocionais se multiplicam, notavelmente o orgulho, a ganância e a inveja.
O orgulho surge deste “eu” que nasce da ignorância; 
A ganância é uma extensão do apego desejoso;
Enquanto a inveja provém do ódio e da aversão.
Assim, os três venenos primários se ramificam em seis paixões: ódio, ganância, ignorância, apego desejoso, inveja e orgulho
Elas correspondem aos seis estados de consciência característicos dos seis reinos da existência. Depois, eles são subdivididos de novo e de novo, totalizando 84 mil tipos diferentes de paixões! 
Todos estes relacionamentos dualistas e afligidos compõem o véu das paixões.
O véu do karma

As várias paixões conduzem a uma grande variedade das ações dualistas, que podem ser — em termos de karma — positivos, negativos ou neutros.
 Elas condicionam a mente e a fazem nascer em um dos seis reinos da existência condicionada. Isto é o que chamamos de véu da atividade condicionada, ou véu do karma.
O Dharma: uma prática de desvelamento

Estes quatro véus que encobrem a mente fazem sermos seres comuns, lançados pelas ilusões nos seis reinos do samsara.
Não podemos ser livres desta condição, exceto eliminando os véus e desvelando a mente.
A prática do Dharma oferece numerosos métodos que permitem que estas impurezas caiam pouco a pouco, assim revelando a jóia da mente pura.
A natureza pura da mente pode ser comparada a uma bola de cristal e, os quatro véus, a quatro pedaços de pano que a encobrem e escondem mais e mais. 
De acordo com uma outra imagem, estes véus podem ser comparados às camadas de nuvens que encobrem o céu da mente. Do mesmo que as nuvens obscurecem o céu, os véus mascaram o espaço aberto, assim como a claridade de sua lucidez. A prática do Dharma, e primariamente a meditação, gradualmente removem estes diferentes véus, do mais grosseiro ao mais sutil.
Quando todos estes véus ou coberturas são removidos, há um desvelamento completo, um estado de purificação chamado de sang em tibetano. O desabrochamento de todos os aspectos do espaço e da luz, revelados por esta purificação, é descrito pelo termo gye. Estas duas sílabas, sang gye, que literalmente significam “pureza e desabrochamento perfeitos” ou “completamente puro e totalmente desabrochado”, juntas formam a palavra tibetana para buddha. O estado de buddha é a manifestação das qualidades inerentes à mente, uma vez que ela tenha sido purificada dos véus que a obscurecem.
O desvelamento, que revela as puras qualidades inerentes da mente, marca todo o progresso sobre o caminho da prática do Dharma.

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*Kalu Rinpoche (1905-1989). A foto do alto da página é do atual Kalu Rinpoche.


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