Os véus da mente
Se não há uma diferença essencial
entre a mente de um buddha e a nossa própria mente, por que um buddha tem
tantas qualidades atribuídas a ele, e nós não?
A diferença é que em nossas
mentes a natureza de buddha está obscurecida por todos os tipos de cobertura.
No nível impuro — isso é na
ignorância — cada uma das três facetas da mente pura se torna um dos elementos
que constituem a experiência dualista. Para começar, a ignorância sobre a
abertura da mente conduz à uma concepção de um sujeito, de um “eu”, de um
observador; e a ignorância sobre a claridade essencial conduz à ignorância dos
objetos exteriores. É assim que surge a dicotomia sujeito-objeto, eu-outro.
Uma vez que os dois pólos da visão
dualista tenham sido estabelecidos, vários relacionamentos se desenvolvem entre
eles, que por sua vez motivam diferentes atividades. Os estágios deste processo são constituídos de quatro véus que mascaram a mente pura, a natureza
de buddha.
Eles são:
1- o véu da ignorância,
2- o véu da tendência básica
3- o véu das
aflições mentais
4- o véu do karma
Eles são consecutivos e estão estruturados
um após o outro.
O véu da ignorância
A ignorância sobre a verdadeira
natureza da mente, isto é, o simples fato dela não reconhecer o que é realmente,
é chamada de ignorância fundamental. É a inabilidade básica da mente
condicionada perceber a si mesma.
Podemos comparar a mente pura, que possui as
três
qualidades essenciais, com as águas calmas e transparentes, nas quais tudo pode ser visto claramente.
qualidades essenciais, com as águas calmas e transparentes, nas quais tudo pode ser visto claramente.
O véu da ignorância é uma falta de
inteligência, um tipo de estado nublado, assim como um vaso opaco faz a água
perder sua claridade transparente. Tal mente obscurecida perde a experiência da abertura lúcida e se torna ignorante de sua natureza essencial.
Diz-se que a ignorância
fundamental é inata, porque ela é inerente à nossa existência; nascemos com
ela.
De fato, ela é o ponto de partida da dualidade, a raiz de todas as ilusões
e a fonte de todo sofrimento.
O véu da tendência básica
A mente controlada pela ignorância
se engaja em todas as ilusões, entre as quais a mais básica, a raiz de todas as
outras ilusões, é o apego dualista em termos de sujeito e objeto.
Quando a mente não conhece a
extensão de sua abertura, ao invés de experienciar sem centro ou periferia,
percebemos tudo através de um ponto central de referência. Este ponto, o centro
que se apropria de todas as experiências, é o observador, o ego-sujeito. É
deste modo que a mente, ignorante de sua abertura, produz a experiência
delusória de um “eu”.
Ao mesmo tempo, quando a natureza
da claridade vai sem ser reconhecida, experienciamos uma sensação de “outro” ao
invés da qualidade autoconsciente da mente. Assim, o sujeito-ego distingue
coisas que se tornam a qualidade autoconsciente. Assim o sujeito-ego distingue
coisas que se tornam objetos externos. Surge a dicotomia do sujeito e do
objeto, do “eu” e do outro. As “outras” coisas têm uma forma dual: as
aparências do mundo externo e os fenômenos duais.
Esta tendência da mente ser
ignorante de sua natureza, e de perceber todas as situações de modo dualista, é
o véu da tendência básica. Desta perspectiva, este segundo véu pode ser chamado
de véu do apego dualista.
O véu das paixões
Como vimos, a mente ignorante de
sua abertura e de sua claridade fica imersa na dualidade. Então, a ignorância
da sensitividade da mente dá surgimento a todos os relacionamentos que existem
entre os dois pólos da dicotomia sujeito-objeto. No nível puro, a sensitividade
é a imediação e a multiplicidade das qualidades iluminadas, mas na ignorância,
estas qualidades são substituídas pelas infinitas possibilidades relacionais
dualistas. Na ignorância, começamos tomando os objetos externos como sendo
coisas reais. Então experienciamos atração aos objetos agradáveis, aversão aos
objetos desagradáveis e indiferença aos objetos que parecem neutros.
Se um
objeto é agradável, queremos possuí-lo. Por outro lado, diante de objetos
ou situações desagradáveis, temos uma atitude de rejeição ou fuga. Finalmente,
não nos relacionamos com certos objetos ou situações por causa da indiferença
ou estagnação mental.
Estes três tipos de relacionamentos — atração, aversão e indiferença—
correspondem ao desejo, ao ódio e à ignorância.
Estes são os três venenos
mentais primários, as três principais aflições mentais que animam e condicionam
a mente habitual.
Na base destes três tipos de
relacionamento, outras numerosas aflições mentais ou emocionais se multiplicam,
notavelmente o orgulho, a ganância e a inveja.
O orgulho surge deste “eu” que
nasce da ignorância;
A ganância é uma extensão do apego desejoso;
Enquanto a
inveja provém do ódio e da aversão.
Assim, os três venenos primários se
ramificam em seis paixões: ódio, ganância, ignorância, apego desejoso, inveja e
orgulho.
Elas correspondem aos seis estados de consciência característicos dos
seis reinos da existência. Depois, eles são subdivididos de novo e de novo,
totalizando 84 mil tipos diferentes de paixões!
Todos estes relacionamentos
dualistas e afligidos compõem o véu das paixões.
O véu do karma
As várias paixões conduzem a uma
grande variedade das ações dualistas, que podem ser — em termos de karma —
positivos, negativos ou neutros.
Elas condicionam a mente e a fazem nascer em
um dos seis reinos da existência condicionada. Isto é o que chamamos de véu da
atividade condicionada, ou véu do karma.
O Dharma: uma prática de desvelamento
Estes quatro véus que encobrem a
mente fazem sermos seres comuns, lançados pelas ilusões nos seis reinos do
samsara.
Não podemos ser livres desta condição, exceto eliminando os véus e
desvelando a mente.
A prática do Dharma oferece numerosos métodos que permitem
que estas impurezas caiam pouco a pouco, assim revelando a jóia da mente pura.
A natureza pura da mente pode ser
comparada a uma bola de cristal e, os quatro véus, a quatro pedaços de pano que
a encobrem e escondem mais e mais.
De acordo com uma outra imagem, estes véus
podem ser comparados às camadas de nuvens que encobrem o céu da mente. Do mesmo que as nuvens obscurecem o céu, os véus mascaram o espaço aberto, assim
como a claridade de sua lucidez. A prática do Dharma, e primariamente a
meditação, gradualmente removem estes diferentes véus, do mais grosseiro ao
mais sutil.
Quando todos estes véus ou
coberturas são removidos, há um desvelamento completo, um estado de purificação
chamado de sang em tibetano. O desabrochamento de todos os aspectos do espaço e
da luz, revelados por esta purificação, é descrito pelo termo gye. Estas duas
sílabas, sang gye, que literalmente significam “pureza e desabrochamento
perfeitos” ou “completamente puro e totalmente desabrochado”, juntas formam a
palavra tibetana para buddha. O estado de buddha é a manifestação das
qualidades inerentes à mente, uma vez que ela tenha sido purificada dos véus
que a obscurecem.
O desvelamento, que revela as
puras qualidades inerentes da mente, marca todo o progresso sobre o caminho da prática
do Dharma.
*Kalu Rinpoche (1905-1989). A foto
do alto da página é do atual Kalu Rinpoche.
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