O horário do recreio transcorria normalmente numa escola de
ensino fundamental dos Estados Unidos. De repente, duas garotas começaram uma
discussão nos corredores. Uma delas sofria bullying por causa de suas roupas -
e costumava reagir às brincadeiras de mau gosto socando a cara do piadista da
vez.
Ela ergueu a colega pelo colarinho e parecia prestes a
quebrar lhe os dentes. A menina, então, olhou no fundo dos olhos da rival e
disse: "Para a sua sorte, eu faço meditação". Em seguida, soltou a
colega, sentou -se na escada. fechou os olhos e iniciou um exercício de
respiração. A cena parece tirada de um filme da Sessão da Tarde, mas aconteceu
de fato na escola Robert W. Colleman, de Baltirnore, no Estado de Maryland. Lá,
a rede de ensino público implemento programas de meditação para aprimorar a
mente dos alunos. A técnica também é utilizada como ferramenta de acolhimento
em casos de mau comportamento.
Algumas das escolas locais chegaram a abolir as salas de
detenção, onde alunos são enviados quando matam aula, brigam e perturbam o
ambiente, e as substituíram por espaços reservados ao mindfulness.
O projeto foi idealizado pela Holistic Life Foundation (HLF)
, uma instituição sem fins lucrativos dedicada a incrementar a qualidade de
vida por meio de ioga e meditação. Chamado de Holistic Me After Séhool
("Me torne holístico depois da escola"), o programa existe há 15 anos
e abrange diversas atividades, como música, artes e esportes, embora os
exercícios de relaxamento e respiração sejam o item fundamental. "Notamos
uma transformação em nossas vidas a partir da meditação e queríamos levar esses
benefícios a outras pessoas" , explica Andres Gonzalez, diretor de
marketing e cofundador da HLF. "Então. pensamos em começar com os mais
jovens."
O objetivo da ação é tornar as crianças mais conscientes dos
seus pensamentos e emoções. Assim, elas podem gerir o stress e a raiva de um
jeito saudável.
“É a minha história favorita”, confessa Gonzales, que
testemunhou a cena em 2009. A proposta contempla, em sua maioria, estudantes
entre 5 e 11 anos, faixa etária que tende a provocar um pequeno caos em aula.
É difícil imaginá-los quietos por alguns minutos para se
concentrar na própria respiração. Mas, os pequenos surpreendem. “ As crianças
são naturalmente presentes. Suas mentes não oscilam tanto entre o passado e o
futuro”, diz Alexandre Lopes, instrutor de yoga e meditação da Arte de Viver,
uma organização internacional que já ministrou cursos sobre técnicas em mais de
60 escolas brasileiras.
A escola Robert W Colleman, por exemplo, coloca a meninada
para meditar duas vezes por dia. É o chamado Mindfull Moment. Às 08he às 14h,
uma gravação é emitida pelos alto- falantes e induz os alunos a observarem os
seus próprios pensamentos. "Utilizamos principalmente exercícios de
respiração e de incentivo ao afeto mútuo", conta Gonzalez. As sessões de
mindfulness duram 15 minutos e são monitoradas pela equipe da HLF. Há até uma
competição entre as salas para saber quem medita com mais afinco. Os
professores dão notas pelo engajamento na atividade, e a escola premia as
melhores classes com um troféu.
Alguns dos alunos mais destacados se tornam "embaixadores"
da prática. "Eles se voluntariam para ajudar a envolver os colegas durante
os exercícios", relata Gonzalez. Além das pílulas de meditação, a Robert W
Colleman oferece três aulas de ioga por dia na biblioteca. Cada uma das 15
turmas frequenta uma dessas sessões por semana.
SALINHA DA
CONSCIÊNCIA A abordagem
adotada pela escola também inclui a meditação sem hora marcada, realizada no
Mindfull Moment Room, a antiga sala de detenção da escola. Depois de uma briga
ou de uma discussão acalorada, as crianças são recepcionadas por um profissional
treinado pela HLF e passam por uma sessão de terapia meditativa de
aproximadamente 20 minutos.
Elas são orientadas a pensar no fato ou na emoção que as
levou até ali e realizam exercícios de respiração e relaxamento - uma espécie
de reset mental para continuar o dia.
Os próprios estudantes podem procurar o "Quartinho da
Calma" caso não se sintam bem.
Para otirnizar o processo, os mentores da HLF realizam uma
ronda pelas salas no início do dia
e conferem se algum aluno está apresentando alterações de
comportamento ou necessita de
apoio. A parceria da HLF com a escola começou em 2008, mas a
introdução da sala de meditação ocorreu em 2013. De lá para cá, a Instituição
registrou cerca de 400 atendimentos no local. Essa nova abordagem derrubou a
incidência de suspensões: de quatro por ano para zero.
Já na Patterson High School, outra das escolas de Baltimore
que adotaram o Mindfull Moment Room, o número de alunos afastados devido ao
envolvimento em brigas diminuiu de 49
para 23 entre 2013 e 2014. No mesmo período, as punições para
estudantes pegos perambulando pelos corredores em horário de aula passaram de
62 para 35. "A introspecção e o diálogo interior permitem fazer melhores
escolhas e influenciam o processo decisório, refletindo no comportamento",
justifica a especialista em neuropsicologia Regina Migliori, idealizadora do
MindEduca. Aplicado em escolas de Campinas Belo Horizonte e Vitória, o programa
associa o mindfulness a conhecimentos neurocientíficos e técnicas de desenvolvimento
humano.
TENDÊNCIA MUNDIAL Nos últimos anos, os Estados Unidos têm
presenciado um crescimento das práticas de meditação nas escolas.
E com bons resultados. A
Visitacion Valley Middle School, de San Francisco, introduziu o programa
Quiet Time para alunos da 5a à 12" séries em 2007. O projeto é coordenado
pelo Centro para o Bem - EStar e Desempenho Educacional (CWAE, na sigla em
inglês). urna organização sem fins lucrativos da Califórnia.
Até então, o colégio convivia com altos índices de abstenção
e episódios de violência entre os estudantes. Logo no primeiro ano da
iniciativa a Visit Valley viu sua média de suspensões despencar 45%. Esse
percentual recuou 79% desde então. Os alunos também apareceram entre os mais
felizes de San Francisco na pesquisa anual de saúde infantil da Califórnia,
desenvolvida pelo instituto WeStEd. De acordo com um levantamento feito pela CWAE
os benefícios também atingem professores e administradores escolares envolvidos
em programas de meditação estudantil: os níveis de depressão, ansiedade e raiva
nesses profissionais são menores.
O trabalho de instituições dedicadas à meditação para crianças
também tem crescido em outros países, como no Reino Unido, onde o Mindfullness
in Schools Projeét busca disseminar a prática entre pais e professores desde
2009. No Brasil, o movimento igualmente vem ganhando força. Uma das principais
organizações voltadas a esse fim é a Mahatma Meditação Paz, fundada pela
psiquiatra indiana Anmol Mora.
MUITO ALÉM DOS
TEMPLOS Inspirada nos mantras
da meditação transcendental, Anmol criou um programa pautado pela repetição de sete
afirmações positivas - como "Eu estou em paz" e "Minha escola
está em paz" -, que devem ser proferidas ou mentalizadas antes das aulas.
O método é distribuído por meio de um kit gratuito, contendo orientações aos
professores e um CD com músicas compostas para facilitar a assimilação por
crianças menores de 6 anos. "O aumento do bullying e dos diagnósticos de
hiperatividade e déficit de atenção na infância me estimularam a promover uma
técnica que trago comigo desde a ancestralidade" , conta Anmol, filha de
um físico quântico e de uma professora de ioga e de sânscrito. Iniciado em 2011,
o projeto Mahatma Meditação Paz nas Escolas já chegou a 42 mil crianças e está
presente em praticamente todos os Estados brasileiros, além de escolas em
Portugal e na Espanha.
Outro projeto tupiniquim é a Meditação Laica Educacional,
criada pela psicóloga e educadora física Claudiah Rato. Praticante desde 1989,
Claudiah decidiu ensinar a técnica quando percebeu o stress psicológico vivido
pelas crianças na transição para a adolescência. Para distensionar a turma, a
professora desenvolveu exercícios com foco em relaxamento, concentração e
transcendência do pensamento.
Em seu método, Claudiah procura ressaltar a independência da
meditação em relação a sistemas religiosos ou filosóficos. "Trata -se de
uma prática orgânica pensada como estratégia pedagógica para o auto conhecimento
e a educação emocional", garante. A Holistif Life Foundation adota a mesma
precaução. "Sempre reforçamos o nosso caráter secular. Não ensinamos
nenhum tipo de religião" , sublinha Andres Gonzalez.
Essa possível confusão acerca do tema surge como um dos
entraves enfrentados pela meditação para se consolidar como um recurso válido
no sistema educacional. "Os pais costumam questionar isso. Porém, depois
de esclarecida a ausência do vínculo religioso, o retorno vindo das famílias é muito
positivo", diz a educadora física Rosângela Martins, coordenadora do projeto
Volta ao Centro, realizado na Escola Lupércio Belarmino da Silva, em
Florianópolis. O programa mescla a abordagem preconizada pela psiquiatra Anmol
Mora com as técnicas do Movimento Yoga na Educação, elaborado na França.
Vale ressaltar, ainda, uma questão referente aos cuidados pedagógicos
exigidos para o trabalho com
crianças e adolescentes. "Não se pode garantir
que um praticante de meditação, mesmo avançado, saiba conduzir a técnica dentro
de uma escola, respeitando os preceitos necessários", pontua Claudiah
Rato. Nesse sentido, o método elaborado por ela é direcionado à capacitação e
certificação de professores, com base em uma didática particular para o
aprendizado da meditação em sala de aula. "Meditar é uma habilidade humana
que deve ser desenvolvida na escola, como a leitura e a escrita."
FREIO NOS IMPULSOS A ciência tem se interessado
pelo ensino da meditação em escolas.
Os benefícios, em geral, se assemelham àqueles costumeiramente
relatados pelos adultos como redução de stress, aumento da concentração, maior
controle sobre a impulsividade e desenvolvimento da empatia em relação ao próximo.
"As crianças ganham autoestima e ficam mais compassivas, além de
aprenderem a resolver os conflitos de forma pacífica", complementa Andres
Gonzalez, da Holistic Life Foundation.
A Universidade Davis, da Califórnia, realizou uma pesquisa
com três escolas da cidade de Oakland que aplicaram um programa criado pela
Mindful Schools, outra organização dedicada ao ensino da meditação em
instituições educacionais nos EUA. Entre os professores entrevistados, 84%
afirmaram que os alunos se acalmaram mais facilmente após terem contato com a
prática. Já entre os estudantes, 61% relataram maior foco nas aulas.
A cineasta norte-americana Julie Bayer se surpreendeu ao
ouvir o filho de 5 anos conversando com um amiguinho sobre como a respiração
profunda afetava o cérebro e acalmava as pessoas. Ele havia aprendido em aulas
de meditação realizadas na Citizens of the World Charter School (CWCS), escola
primária da Califórnia. "Mesmo praticando meditação há anos, jamais havia
pensado em ensiná-lo e sequer sabia que ele havia aprendido na escola",
conta Julie. A naturalidade dos meninos para tratar o assunto inspirou Julie e
o marido, Josh Salzman, a criarem o documentá rio Just Breathe ("Apenas respire").
Disponível no YouTube, o filme tem quatro minutos e mostra diversas crianças da
CWCS contando como lidam com a raiva e a depressão por meio das práticas de
atenção plena. O curta, lançado em 2014, ganhou notoriedade após ser
apresentado no programa de Oprah Winfrey e foi traduzido para seis idiomas. Em breve,
será utilizado no treinamento de pessoas em centros de detenção juvenil de
Nova York. Mudanças como essas também são notadas em solo brasileiro.
"Recebemos inúmeros depoimentos de pais e professores indicando que as crianças
se mostram mais relaxadas e concentradas. O desempenho e o clima escolar também
melhoram consideravelmente" , relata a psiquiatra Amnol Mora, da Mahatma
Meditação. Além das vantagens de curto prazo, a eficácia da meditação pode ser
ainda mais significativa para as crianças ao longo da vida. Isso estaria diretamente
relacionado ao incremento da neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de se
adaptar aos estímulos externos.
O grupo de Neuropsicologia Clínica da PUCRS identificou
sinais disso em um estudo rea- lizado em 2014, com alunos do 5° ano de escolas
públicas de Porto Alegre e de Gramado (RS).
Durante três meses, alguns estudantes praticaram 5 minutos
diários de meditação, seguindo o método da Mahatma Meditação Paz. As crianças analisadas
mostraram melhores avanços em funções cognitivas, como planejamento e velocidade
de processamento de conteúdos, na comparação com aquelas que não meditaram.
"Isso sugere a formação de uma reserva cognitiva. Ou seja, uma cognição
extra para quando houver maior demanda mental", explica a neuropsicóloga
Rochele Fonseca, integrante do projeto. "Há regiões e conexões cerebrais
pré- prontas para assumirem algumas funções, mas elas precisam de um empurrãozinho."
A meditação daria esse impulso.
A Universidade da Califórnia encontrou resultados semelhantes.
Em 2012, um estudo coordenado pelo Laboratório de euroimagem da instituição deteétou
uma relação entre o tempo de meditação e a quantidade de dobras do córtex
cerebral. A pesquisa reuniu 50 praticantes. Aqueles que meditavam havia mais
tempo apresentaram um cérebro com número maior de sulcos na superfície. Ou
seja, a prática pode ter causado essas modificações físicas. Em tese, as rugas
do córtex facilitariam a comunicação entre os neurônios e, por consequência,
aprimorariam o aprendizado, a atenção e a memória.
"A consistência das evidências neurocientíficas e o
mapeamento dos resultados positivos fortalecem a necessidade da adoção dessas
novas metodologias no processo educativo" , acredita Regina Migliori, do
MindEduca.
As técnicas de concentração também podem ser úteis para
atenuar os sintomas de crianças com transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH). Em 2007, a revista científica Child Psyéhology Clinical
and Psyéhiatry publicou uma pesquisa, conduzida por médicos australianos, com
48 crianças portadoras de TDAH. Elas se submeteram a um programa que associava
a medicação a práticas meditativas regulares em casa, realizadas junto com os
pais. Ao término da análise, os participantes relataram uma diminuição de aproximadamente
35% dos sintomas. Além disso, seis crianças abandonaram os remédios e outras 12
cortaram a dosagem pela metade. "Com tantas atividades e informações, as
crianças estão ficando ansiosas e deprimidas.
A meditação traz a mente delas para o estado natural
novamente", explica Alexandre Lopes, da Arte de Viver. Já os pais que
integraram o estudo, acompanhado pelo Prince ofWales Hospital, de Sidney, se
sentiram mais felizes e capazes de controlar o comportamento de seus filhos.
FAMÍLIA ZEN Transformar a meditação num
costume familiar pode ser mesmo um ótimo caminho para estreitar as relações em
casa. Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Oregon, nos Estados Unidos,
reuniu 18 duplas de pais e filhos entre 9 e 13 anos para um programa de redução
do stress familiar por meio do mindfulness.
Antes e depois do curso, os pais foram submetidos a exames
de ressonância magnética cerebral. O grupo analisado apresentou aumento na
atividade neural das áreas relacionadas à consciência emocional e à empatia.
Essa modificação foi notada pelos filhos, especialmente os menores. As crianças
afirmaram que os pais passaram a prestar mais atenção nelas depois do programa.
Ainda assim, quem pretende ensinar a técnica aos filhos deve
tomar precauções. "O ideal é começar aos poucos e respeitar o tempo deles.
Algumas crianças podem achar diferente no início, mas a repetição
diária acaba transformando num hábito natural, como escovar os dentes",
explica Camila Fernandes, instrutora de ioga especializada em meditação,
criadora do método Infância Zen - um programa pensado para quem deseja iniciar
os pimpolhos nessa prática. O próprio exemplo das escolas de Baltimore pode ser
adaptado dentro de casa para aquelas horas em que um puxão de orelha parece ser
a única alternativa. "Fazer a criança respirar e se acomodar em um
ambiente mais tranquilo e seguro permitirá que ela reflita e busque o seu ponto
de equilíbrio", sugere a professora Rosângela, da escola Lupércio Silva. Os especialistas se
empolgam e acreditam que essas iniciativas podem ajudar a construir uma sociedade
mais harmonizada e pacífica dentro de 10 ou 20 anos. "Como disse o Dalai Lama,
se ensinarmos meditação a cada criança de 8 anos, eliminaremos a violência no
mundo dentro de uma geração" , cita Andres Gonzalez, da HLF. Sendo assim,
pulmõezinhos à obra.
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