terça-feira, 16 de maio de 2017

Superinteressante MEDITAÇÃO: Lição de Transcendência



O horário do recreio transcorria normalmente numa escola de ensino fundamental dos Estados Unidos. De repente, duas garotas começaram uma discussão nos corredores. Uma delas sofria bullying por causa de suas roupas - e costumava reagir às brincadeiras de mau gosto socando a cara do piadista da vez. 

Ela ergueu a colega pelo colarinho e parecia prestes a quebrar lhe os dentes. A menina, então, olhou no fundo dos olhos da rival e disse: "Para a sua sorte, eu faço meditação". Em seguida, soltou a colega, sentou -se na escada. fechou os olhos e iniciou um exercício de respiração. A cena parece tirada de um filme da Sessão da Tarde, mas aconteceu de fato na escola Robert W. Colleman, de Baltirnore, no Estado de Maryland. Lá, a rede de ensino público implemento programas de meditação para aprimorar a mente dos alunos. A técnica também é utilizada como ferramenta de acolhimento em casos de mau comportamento.

Algumas das escolas locais chegaram a abolir as salas de detenção, onde alunos são enviados quando matam aula, brigam e perturbam o ambiente, e as substituíram por espaços reservados ao mindfulness.

O projeto foi idealizado pela Holistic Life Foundation (HLF) , uma instituição sem fins lucrativos dedicada a incrementar a qualidade de vida por meio de ioga e meditação. Chamado de Holistic Me After Séhool ("Me torne holístico depois da escola"), o programa existe há 15 anos e abrange diversas atividades, como música, artes e esportes, embora os exercícios de relaxamento e respiração sejam o item fundamental. "Notamos uma transformação em nossas vidas a partir da meditação e queríamos levar esses benefícios a outras pessoas" , explica Andres Gonzalez, diretor de marketing e cofundador da HLF. "Então. pensamos em começar com os mais jovens."
O objetivo da ação é tornar as crianças mais conscientes dos seus pensamentos e emoções. Assim, elas podem gerir o stress e a raiva de um jeito saudável.

“É a minha história favorita”, confessa Gonzales, que testemunhou a cena em 2009. A proposta contempla, em sua maioria, estudantes entre 5 e 11 anos, faixa etária que tende a provocar um pequeno caos em aula.

É difícil imaginá-los quietos por alguns minutos para se concentrar na própria respiração. Mas, os pequenos surpreendem. “ As crianças são naturalmente presentes. Suas mentes não oscilam tanto entre o passado e o futuro”, diz Alexandre Lopes, instrutor de yoga e meditação da Arte de Viver, uma organização internacional que já ministrou cursos sobre técnicas em mais de 60 escolas brasileiras.

A escola Robert W Colleman, por exemplo, coloca a meninada para meditar duas vezes por dia. É o chamado Mindfull Moment. Às 08he às 14h, uma gravação é emitida pelos alto- falantes e induz os alunos a observarem os seus próprios pensamentos. "Utilizamos principalmente exercícios de respiração e de incentivo ao afeto mútuo", conta Gonzalez. As sessões de mindfulness duram 15 minutos e são monitoradas pela equipe da HLF. Há até uma competição entre as salas para saber quem medita com mais afinco. Os professores dão notas pelo engajamento na atividade, e a escola premia as melhores classes com um troféu.

Alguns dos alunos mais destacados se tornam "embaixadores" da prática. "Eles se voluntariam para ajudar a envolver os colegas durante os exercícios", relata Gonzalez. Além das pílulas de meditação, a Robert W Colleman oferece três aulas de ioga por dia na biblioteca. Cada uma das 15 turmas frequenta uma dessas sessões por semana.

SALINHA DA CONSCIÊNCIA        A abordagem adotada pela escola também inclui a meditação sem hora marcada, realizada no Mindfull Moment Room, a antiga sala de detenção da escola. Depois de uma briga ou de uma discussão acalorada, as crianças são recepcionadas por um profissional treinado pela HLF e passam por uma sessão de terapia meditativa de aproximadamente 20 minutos.
Elas são orientadas a pensar no fato ou na emoção que as levou até ali e realizam exercícios de respiração e relaxamento - uma espécie de reset mental para continuar o dia.

Os próprios estudantes podem procurar o "Quartinho da Calma" caso não se sintam bem.
Para otirnizar o processo, os mentores da HLF realizam uma ronda pelas salas no início do dia
e conferem se algum aluno está apresentando alterações de comportamento ou necessita de
apoio. A parceria da HLF com a escola começou em 2008, mas a introdução da sala de meditação ocorreu em 2013. De lá para cá, a Instituição registrou cerca de 400 atendimentos no local. Essa nova abordagem derrubou a incidência de suspensões: de quatro por ano para zero.

Já na Patterson High School, outra das escolas de Baltimore que adotaram o Mindfull Moment Room, o número de alunos afastados devido ao envolvimento em brigas diminuiu de 49
para 23 entre 2013 e 2014. No mesmo período, as punições para estudantes pegos perambulando pelos corredores em horário de aula passaram de 62 para 35. "A introspecção e o diálogo interior permitem fazer melhores escolhas e influenciam o processo decisório, refletindo no comportamento", justifica a especialista em neuropsicologia Regina Migliori, idealizadora do MindEduca. Aplicado em escolas de Campinas Belo Horizonte e Vitória, o programa associa o mindfulness a conhecimentos neurocientíficos e técnicas de desenvolvimento humano.

TENDÊNCIA MUNDIAL  Nos últimos anos, os Estados Unidos têm presenciado um crescimento das práticas de meditação nas escolas.
E com bons resultados. A  Visitacion Valley Middle School, de San Francisco, introduziu o programa Quiet Time para alunos da 5a à 12" séries em 2007. O projeto é coordenado pelo Centro para o Bem - EStar e Desempenho Educacional (CWAE, na sigla em inglês). urna organização sem fins lucrativos da Califórnia.

Até então, o colégio convivia com altos índices de abstenção e episódios de violência entre os estudantes. Logo no primeiro ano da iniciativa a Visit Valley viu sua média de suspensões despencar 45%. Esse percentual recuou 79% desde então. Os alunos também apareceram entre os mais felizes de San Francisco na pesquisa anual de saúde infantil da Califórnia, desenvolvida pelo instituto WeStEd. De acordo com um levantamento feito pela CWAE os benefícios também atingem professores e administradores escolares envolvidos em programas de meditação estudantil: os níveis de depressão, ansiedade e raiva nesses profissionais são menores.

O trabalho de instituições dedicadas à meditação para crianças também tem crescido em outros países, como no Reino Unido, onde o Mindfullness in Schools Projeét busca disseminar a prática entre pais e professores desde 2009. No Brasil, o movimento igualmente vem ganhando força. Uma das principais organizações voltadas a esse fim é a Mahatma Meditação Paz, fundada pela psiquiatra indiana Anmol Mora.

MUITO ALÉM DOS TEMPLOS     Inspirada nos mantras da meditação transcendental, Anmol criou um programa pautado pela repetição de sete afirmações positivas - como "Eu estou em paz" e "Minha escola está em paz" -, que devem ser proferidas ou mentalizadas antes das aulas. O método é distribuído por meio de um kit gratuito, contendo orientações aos professores e um CD com músicas compostas para facilitar a assimilação por crianças menores de 6 anos. "O aumento do bullying e dos diagnósticos de hiperatividade e déficit de atenção na infância me estimularam a promover uma técnica que trago comigo desde a ancestralidade" , conta Anmol, filha de um físico quântico e de uma professora de ioga e de sânscrito. Iniciado em 2011, o projeto Mahatma Meditação Paz nas Escolas já chegou a 42 mil crianças e está presente em praticamente todos os Estados brasileiros, além de escolas em Portugal e na Espanha.

Outro projeto tupiniquim é a Meditação Laica Educacional, criada pela psicóloga e educadora física Claudiah Rato. Praticante desde 1989, Claudiah decidiu ensinar a técnica quando percebeu o stress psicológico vivido pelas crianças na transição para a adolescência. Para distensionar a turma, a professora desenvolveu exercícios com foco em relaxamento, concentração e transcendência do pensamento.

Em seu método, Claudiah procura ressaltar a independência da meditação em relação a sistemas religiosos ou filosóficos. "Trata -se de uma prática orgânica pensada como estratégia pedagógica para o auto conhecimento e a educação emocional", garante. A Holistif Life Foundation adota a mesma precaução. "Sempre reforçamos o nosso caráter secular. Não ensinamos nenhum tipo de religião" , sublinha Andres Gonzalez.

Essa possível confusão acerca do tema surge como um dos entraves enfrentados pela meditação para se consolidar como um recurso válido no sistema educacional. "Os pais costumam questionar isso. Porém, depois de esclarecida a ausência do vínculo religioso, o retorno vindo das famílias é muito positivo", diz a educadora física Rosângela Martins, coordenadora do projeto Volta ao Centro, realizado na Escola Lupércio Belarmino da Silva, em Florianópolis. O programa mescla a abordagem preconizada pela psiquiatra Anmol Mora com as técnicas do Movimento Yoga na Educação, elaborado na França.

Vale ressaltar, ainda, uma questão referente aos cuidados pedagógicos exigidos para o trabalho com
crianças e adolescentes. "Não se pode garantir que um praticante de meditação, mesmo avançado, saiba conduzir a técnica dentro de uma escola, respeitando os preceitos necessários", pontua Claudiah Rato. Nesse sentido, o método elaborado por ela é direcionado à capacitação e certificação de professores, com base em uma didática particular para o aprendizado da meditação em sala de aula. "Meditar é uma habilidade humana que deve ser desenvolvida na escola, como a leitura e a escrita."

FREIO NOS IMPULSOS     A ciência tem se interessado pelo ensino da meditação em escolas.
Os benefícios, em geral, se assemelham àqueles costumeiramente relatados pelos adultos como redução de stress, aumento da concentração, maior controle sobre a impulsividade e desenvolvimento da empatia em relação ao próximo. "As crianças ganham autoestima e ficam mais compassivas, além de aprenderem a resolver os conflitos de forma pacífica", complementa Andres Gonzalez, da Holistic Life Foundation.

A Universidade Davis, da Califórnia, realizou uma pesquisa com três escolas da cidade de Oakland que aplicaram um programa criado pela Mindful Schools, outra organização dedicada ao ensino da meditação em instituições educacionais nos EUA. Entre os professores entrevistados, 84% afirmaram que os alunos se acalmaram mais facilmente após terem contato com a prática. Já entre os estudantes, 61% relataram maior foco nas aulas.

A cineasta norte-americana Julie Bayer se surpreendeu ao ouvir o filho de 5 anos conversando com um amiguinho sobre como a respiração profunda afetava o cérebro e acalmava as pessoas. Ele havia aprendido em aulas de meditação realizadas na Citizens of the World Charter School (CWCS), escola primária da Califórnia. "Mesmo praticando meditação há anos, jamais havia pensado em ensiná-lo e sequer sabia que ele havia aprendido na escola", conta Julie. A naturalidade dos meninos para tratar o assunto inspirou Julie e o marido, Josh Salzman, a criarem o documentá rio Just Breathe ("Apenas respire"). Disponível no YouTube, o filme tem quatro minutos e mostra diversas crianças da CWCS contando como lidam com a raiva e a depressão por meio das práticas de atenção plena. O curta, lançado em 2014, ganhou notoriedade após ser apresentado no programa de Oprah Winfrey e foi traduzido para seis idiomas. Em breve, será utilizado no treinamento de pessoas em centros de detenção juvenil de Nova York. Mudanças como essas também são notadas em solo brasileiro. "Recebemos inúmeros depoimentos de pais e professores indicando que as crianças se mostram mais relaxadas e concentradas. O desempenho e o clima escolar também melhoram consideravelmente" , relata a psiquiatra Amnol Mora, da Mahatma Meditação. Além das vantagens de curto prazo, a eficácia da meditação pode ser ainda mais significativa para as crianças ao longo da vida. Isso estaria diretamente relacionado ao incremento da neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de se adaptar aos estímulos externos.

O grupo de Neuropsicologia Clínica da PUCRS identificou sinais disso em um estudo rea- lizado em 2014, com alunos do 5° ano de escolas públicas de Porto Alegre e de Gramado (RS).

Durante três meses, alguns estudantes praticaram 5 minutos diários de meditação, seguindo o método da Mahatma Meditação Paz. As crianças analisadas mostraram melhores avanços em funções cognitivas, como planejamento e velocidade de processamento de conteúdos, na comparação com aquelas que não meditaram. "Isso sugere a formação de uma reserva cognitiva. Ou seja, uma cognição extra para quando houver maior demanda mental", explica a neuropsicóloga Rochele Fonseca, integrante do projeto. "Há regiões e conexões cerebrais pré- prontas para assumirem algumas funções, mas elas precisam de um empurrãozinho." A meditação daria esse impulso.

A Universidade da Califórnia encontrou resultados semelhantes. Em 2012, um estudo coordenado pelo Laboratório de euroimagem da instituição deteétou uma relação entre o tempo de meditação e a quantidade de dobras do córtex cerebral. A pesquisa reuniu 50 praticantes. Aqueles que meditavam havia mais tempo apresentaram um cérebro com número maior de sulcos na superfície. Ou seja, a prática pode ter causado essas modificações físicas. Em tese, as rugas do córtex facilitariam a comunicação entre os neurônios e, por consequência, aprimorariam o aprendizado, a atenção e a memória.

"A consistência das evidências neurocientíficas e o mapeamento dos resultados positivos fortalecem a necessidade da adoção dessas novas metodologias no processo educativo" , acredita Regina Migliori, do MindEduca.

As técnicas de concentração também podem ser úteis para atenuar os sintomas de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Em 2007, a revista científica Child Psyéhology Clinical and Psyéhiatry publicou uma pesquisa, conduzida por médicos australianos, com 48 crianças portadoras de TDAH. Elas se submeteram a um programa que associava a medicação a práticas meditativas regulares em casa, realizadas junto com os pais. Ao término da análise, os participantes relataram uma diminuição de aproximadamente 35% dos sintomas. Além disso, seis crianças abandonaram os remédios e outras 12 cortaram a dosagem pela metade. "Com tantas atividades e informações, as crianças estão ficando ansiosas e deprimidas.

A meditação traz a mente delas para o estado natural novamente", explica Alexandre Lopes, da Arte de Viver. Já os pais que integraram o estudo, acompanhado pelo Prince ofWales Hospital, de Sidney, se sentiram mais felizes e capazes de controlar o comportamento de seus filhos.

FAMÍLIA ZEN         Transformar a meditação num costume familiar pode ser mesmo um ótimo caminho para estreitar as relações em casa. Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, reuniu 18 duplas de pais e filhos entre 9 e 13 anos para um programa de redução do stress familiar por meio do mindfulness.

Antes e depois do curso, os pais foram submetidos a exames de ressonância magnética cerebral. O grupo analisado apresentou aumento na atividade neural das áreas relacionadas à consciência emocional e à empatia. Essa modificação foi notada pelos filhos, especialmente os menores. As crianças afirmaram que os pais passaram a prestar mais atenção nelas depois do programa.
Ainda assim, quem pretende ensinar a técnica aos filhos deve tomar precauções. "O ideal é começar aos poucos e respeitar o tempo deles.

Algumas crianças podem achar diferente no início, mas a repetição diária acaba transformando num hábito natural, como escovar os dentes", explica Camila Fernandes, instrutora de ioga especializada em meditação, criadora do método Infância Zen - um programa pensado para quem deseja iniciar os pimpolhos nessa prática. O próprio exemplo das escolas de Baltimore pode ser adaptado dentro de casa para aquelas horas em que um puxão de orelha parece ser a única alternativa. "Fazer a criança respirar e se acomodar em um ambiente mais tranquilo e seguro permitirá que ela reflita e busque o seu ponto de equilíbrio", sugere a professora Rosângela, da escola Lupércio Silva. Os especialistas se empolgam e acreditam que essas iniciativas podem ajudar a construir uma sociedade mais harmonizada e pacífica dentro de 10 ou 20 anos. "Como disse o Dalai Lama, se ensinarmos meditação a cada criança de 8 anos, eliminaremos a violência no mundo dentro de uma geração" , cita Andres Gonzalez, da HLF. Sendo assim, pulmõezinhos à obra.

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