Este é um assunto importante e delicado, que sempre
se menosprezou. Ao que parece, os yogis do século XXI estão
tão ocupados nos seus misteres, que esqueceram ou passaram a considerar
desnecessário deter-se em detalhes aparentemente insignificantes como não
mentir ou cultivar o contentamento.
Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do Yoga,
tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo. Por outro lado, é
desconfortável falar sobre estes assuntos, porque ninguém gosta de
reconhecer-se como mentiroso ou ladrão, para dar os exemplos mais
desagradáveis. Ao invés de ver quem vai atirar a primeira pedra, lembremos que yama e niyama são
os dois primeiros passos da caminhada, condição indispensável para que a
prática dê resultados concretos.
YAMA significa controle ou domínio.
É o pontapé inicial.
Os yamas são as cinco proscrições:
1-
não usar nenhum tipo de violência (ahimsá);
2-
falar a verdade (satya);
3-
não roubar (asteya);
4-
não desvirtuar a sexualidade (brahmacharya);
5-
e não se apegar (aparigraha)
Esses refreamentos pretendem purificar o yogin,
aniquilar a subjetividade advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios
seguintes.
Desempenham o controle dos impulsos naturais, que
se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, órgãos sexuais e
excretores.
NIYAMA, as prescrições
psicofísicas, compreendem cinco disciplinas:
1- shauchan a purificação;
2- santosha o contentamento;
3- tapas austeridade ou o esforço sobre si próprio;
4- swádhyáya o estudo das
escrituras do Yoga e de si próprio;
5- Íshvara
pranidhána a consagração a Íshvara, o arquétipo do yogi perfeito
Essas atitudes cumprem a função de domínio sobre os
cinco órgãos da percepção (jñánendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos
aponta à organização da vida pessoal do praticante.
Ahimsá, a não-violência,
entende-se como não matar, não agredir, nem causar nenhum tipo de dor a nenhum
ser vivo. Os outros quatro yamas são corolários, conseqüências
naturais da não-violência. Vyasa, comentando o sútra II:30 de
Patañjali, diz:
Ahimsá é abster-se de
ferir qualquer ser, a qualquer momento e de qualquer maneira. A verdade e as
outras formas de refreamento e observâncias se baseiam no espírito da
não-violência.
Satya, a verdade, consiste em
fazer coincidir pensamentos, palavras e atos, o que deve entender-se como
evitar a falsidade em todas suas formas, tanto nas relações do yogin com
as pessoas quanto dele consigo próprio.
Satya é
procurar sempre a verdade, independentemente de aonde essa busca possa nos
levar. Entretanto, Vyása esclarece:
A palavra pronunciada com o
propósito de comunicar o próprio pensamento a outrem é verdadeira, desde que
não engane ou confunda. A palavra deve pronunciar-se não para ferir, mas para
beneficiar. Porque, se ferir, não produzirá harmonia, apenas sofrimento.
Ou seja: a verdade, por mais
verdadeira que seja, não dói.
Asteya significa não
roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem. Não é apenas não
roubar, mas eliminar totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou idéias)
alheios. Vyása ensina:
Steya significa pegar ilegalmente
coisas pertencentes a outrem. Asteya é abstenção dessas tendências, mesmo que
em pensamento.
Brahmacharya, o não
desvirtuamento da sexualidade, pode interpretar-se tanto como total e absoluta
abstinência sexual quanto não dissipação da energia através do orgasmo. Em
ambos os casos pretende-se, embora por meios diferentes, refrear a força
geradora, a fim de entesourá-la para a evolução no sádhana.
Emprega-se hoje a palavra brahmacharya com
o significado de casto, mas a castidade é uma noção ambígua. Nenhum homem é
casto, já que de uma maneira ou de outra emite periodicamente seu sêmen, nem
que seja dormindo. O que é proibido ao brahmacharin não são as práticas
sexuais, são os vínculos e particularmente os atos reprodutores, que, por suas consequências,
o ligam à sociedade, privando-o da sua liberdade. O brahmacharin não
deve ter relacionamentos que impliquem riscos de concepção. Deve ser, de
qualquer modo, econômico com seu sêmen, consagrando-se ao estudo. Alain
Daniélou, Shiva e Dionisos, p. 98.
Aparigraha, a não possessividade, traduz-se em generosidade e desapego em
relação não apenas aos bens materiais, mas também às relações afetivas. O apego
nos tira da sintonia necessária para praticar. Vyása esclarece:
Aparigraha significa desistir de cobiçar,
considerando que a cobiça e o acúmulo causam problemas, que as coisas estão
sujeitas à decadência e que a associação com elas causa desconfiança e rancor.
Shauchan é a purificação.
A purificação externa inclui alimentação vegetariana, exercícios de
purificação orgânica (como a lavagem das vias respiratórias e dos aparelhos
digestivo e excretor), e manter limpo o ambiente em que se vive. Um organismo
poluído por hábitos impróprios como o uso de drogas ou alimentação intoxicante
gera comportamentos e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga.
A purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As
técnicas mais refinadas de purificação são tattwa shuddhi e chitta
shuddhi (antar mouna).
Santosha, o contentamento,
consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria,
independentemente das circunstâncias externas, o que facilitará muito o
progresso na prática. Lembre que o melhor surfista não é o que surfa a maior onda:
é o que tem o maior sorriso nos lábios. O melhor yogi não
é o que faz o exercício mais complicado: é aquele que sabe viver melhor sua vida (o que está estreitamente vinculado
com o tamanho do sorriso).
Tapas é calor, ascese,
determinação, força de vontade concentrada, austeridade, esforço sobre
si próprio: "produz a destruição das impurezas, o que conduz ao
aperfeiçoamento da sensibilidade corporal". O objetivo desse esforço sobre
si próprio é atingir um estado de purificação que permita ao indivíduo tomar
posse do seu corpo, indo além dos limites impostos pela percepção limitada da
realidade. "Uma linguagem que não fira, verídica, amigável e benéfica, o
estudo regular das escrituras, tal é o tapas da palavra. A
serenidade e clareza de espírito, a doçura, o silêncio, o autodomínio, a total
purificação do caráter, tal é o tapas consciente."
Swádhyáya é o estudo da
metafísica do Yoga e de si próprio; abrange não apenas o
autoconhecimento através da reflexão sobre a sabedoria das escrituras (shastras),
mas também a aplicação prática desse conhecimento. O swádhyáya alarga
os horizontes do intelecto, enriquece e estimula a prática. O japa,
a repetição de um mantra com fins de meditação, também pode
considerar-se swádhyáya. Diz o Vishnu Purána, VI:6.2:
Do estudo deve-se passar ao Yoga.
Do Yoga deve-se passar ao estudo.
Pela perfeição no estudo e no Yoga, a Consciência Suprema se manifesta.
O estudo é um olho com o qual o Ser se percebe.
O Yoga é o outro.
Íshvara pranidhána, é a consagração a Íshvara (Senhor),
entendido como o arquétipo do yogi, o modelo ideal a ser seguido
pelo praticante. Íshvara pranidhána também significa entregar
as ações e seus frutos a uma vontade superior à própria. Pode entender-se como
auto-aceitação no momento presente ou ainda como serviço à Humanidade. A melhor
definição de Íshvara pranidhána está na Bhagavad Gítá:
Bhavitam bhavati eva.
"Aquilo que tiver que ser, será".
Esse mesmo shástra ainda afirma que "o seu dever é agir,
sem procurar recompensas pelo que você faz".
Íshvara
pranidhána pode também incluir práticas que
tenham como resultado o controle dos órgãos dos sentidos. Por exemplo, a
prática de ásanas pode ser usada para controlar as mãos e os
pés, o que vai facilitar a permanência nas posições sentadas.
Poucos livros ou escolas de Yoga hoje em dia, e ainda menos no Ocidente,
dedicam-se a ensinar os yamas e niyamas. Uma
pequena reflexão sobre eles revela sua importância na manutenção da
"ecologia" social e individual. Através da prática destes preceitos
se estabelece uma convivência pacífica, harmoniosa e feliz na sociedade. É por
essa razão que Patañjali os chama sárvabhauma, supremos ou
universais, pois eles valem para todas as pessoas e em todas as circunstâncias.
Se diz que o Yoga torna o indivíduo egoísta
e apolítico. Mas, o que verdadeiramente acontece, é que o Yoga desprograma os
condicionamentos resultantes das ideologias, as tradições ou os valores
impostos pela sociedade. Ensina o indivíduo a ser ele mesmo e dá uma liberdade
que está além dos preconceitos e formas de comportamento estabelecidas pela
sociedade. Paradoxalmente, desenvolve ao mesmo tempo uma consciência de
solidariedade com a sociedade em que o indivíduo percebe o planeta e a raça
humana como uma unidade. É uma verdadeira revolução interior.
Cada parte do Yoga tem um propósito definido. Esses dois primeiros passos não
são específicos dele, mas configuram uma base de purificação mental, psíquica e
física que resultará indispensável nas etapas posteriores. O Yoga não é moral
nem moralizante: estas prescrições possuem uma função meramente utilitária e,
embora possam funcionar como códigos para facilitar a convivência social,
somente se praticam em função do objetivo final.
Os conceitos do Bem e do Mal não
determinam a conduta do yogin; a única causa do seu comportamento é
o titânico esforço sobre si próprio necessário para viver os yamas e niyamas,
e o resultado desse esforço, a libertação que consegue pelo samádhi.
A primeira palavra que aparece no Yoga
Sútra é atha, que
significa agora. Agora, a seguir, depois que algo já foi
ensinado. Isso, porque o Yoga não é para iniciantes. Por isso
que existem os yamas e niyamas. Você não
conseguiria, e praticamente ninguém, seguí-los à risca. Mas mesmo assim
pode usar o Yoga. Porque está escrito nas Upanishads:
Yata Brahmande tata pindade.
"Assim como é no Universo, assim é também no ser".
Essa última afirmação pode parecer misteriosa. Mas, como colocar realmente os yamas e niyamas em
prática? Talvez você possa concordar comigo em que discorrer sobre a ética é
teoricamente muito interessante, mas impossível de aplicar-se na prática por
seres humanos normais, porque os yamas e niyamas são
para santos, mas o Yoga é para gente como nós.
DICA: Na verdade, você não precisa seguir
todos os yamas e niyamas ao mesmo tempo.
Escolha apenas um, e mantenha-o a qualquer preço. Os outros virão sozinhos.
Pessoalmente, escolhi satya, a verdade. Nós mentimos o tempo todo,
sem perceber, gratuitamente. Mentimos para a nossa família, para os nossos
amigos, para as pessoas com quem nos relacionamos no dia-a-dia e,
principalmente, para nós mesmos. E, quanto mais se mente, mais se reforça o vritti e
o hábito de mentir, o que é um obstáculo intransponível se se quiser realmente
avançar na prática.
O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein disse que "quem
sabe demais acha difícil não ter que mentir". Em certas
circunstâncias, ele tem razão: às vezes, a responsabilidade de lidar com a
verdade pesa bastante. Mas isso não significa que você passará a usar a
"verdade" para agredir os outros "por seu próprio bem".
Porque a verdade pura, aquela que vêm do coração, não machuca nem dói. Vou lhe
contar a história do ladrão e o rei.
A história do ladrão e o rei
Uma vez, um ladrão quis aprender Yoga. Foi visitar
um mestre e disse-lhe que queria praticar, mas que era ladrão, bêbado e
mentiroso. O mestre falou dos yamas e niyamas, e disse que, para começar,
deveria escolher um yama ou um niyama e ater-se a ele. O ladrão pensou:
"minha profissão é roubar. É o que sustenta a minha família, portanto,
fora de questão seguir asteya. A bebida é a minha única fonte de prazer, e
tampouco vou largá-la. Ou seja, que nem shauchan nem tapas. Mas, deixar de
mentir não vai me custar tanto. Vou seguir satya." E assim foi que ele
decidiu falar somente a verdade.
Uma noite, o nosso ladrão foi roubar o palácio real. Eis que o rei estava
passeando pelo jardim após um dia entediante, buscando algo que lhe tirasse o
vazio existencial. Os dois se encontraram e o rei pergunta: "quem é
você?". O ladrão disse a verdade: "sou um ladrão e vim roubar o
tesouro real."
O rei viu ali a possibilidade de viver a emoção e a aventura que estava
procurando desde cedo, e então falou: "eu também sou um ladrão. E sei onde
se guarda a chave da sala do tesouro. Façamos juntos o trabalho e dividamos o
lucro". O ladrão concordou.
Os dois aventureiros entram no palácio, chegam na sala e dividem o tesouro.
Porém, acham três enormes diamantes, que não podem ser divididos sem beneficiar
um deles mais do que o outro. O ladrão, apelando para aquela generosidade que
ocasionalmente conseguem ter os da sua profissão, diz: "fiquemos com um
diamante cada, e deixemos o terceiro para o rei. Afinal, coitado, ele acabou de
perder tudo." Ao separar-se no jardim, o rei pergunta ao ladrão onde ele
mora, e fala da possibilidade de contatá-lo novamente para futuros
"trabalhos". O ladrão fala a verdade.
No dia seguinte, o rei vislumbra a possibilidade de testar seu primeiro
ministro. Chama-o e diz: "ontem à noite tive um sonho estranho. Sonhei que
o tesouro fora roubado. Vá à sala conferir, pois um pressentimento está
oprimindo meu coração."
O ministro entra na sala, vê o diamante que sobrou e pensa: "o nosso rei
perdeu absolutamente tudo. Este único diamante não fará nenhuma
diferença". Esconde a pedra preciosa sob a túnica e volta à sala do trono,
dizendo que, efetivamente, o tesouro inteiro foi roubado. O rei manda prender o
ladrão. Ao ser interrogado na frente do ministro, conta o acontecido: desde o
encontro com o "colega" de profissão até o detalhe do diamante que
eles deixaram na sala.
Desta forma, o rei descobre que o seu ministro não é de confiança, pois mente e
rouba. Manda prendê-lo imediatamente. E, em seu lugar, nomeia primeiro ministro
seu novo amigo, o ladrão. Este, dada a sua nova ocupação, deixou de roubar. E,
como passou a ter outros prazeres, deixou igualmente de beber.
Ou seja, se você também escolher e seguir apenas um dos yamas e niyamas, os
outros acontecerão sozinhos. Se quiser, tome essa escolha como um exercício
temporário, digamos durante algumas horas, dias ou semanas, para observar a
suas próprias reações. Se, por exemplo, você escolheu seguir a não-violência e
sentiu dificuldades, ou não ficou conforme com o resultado, há ainda as outras
possibilidades.
Depois que você conseguir a firme resolução de continuar com a sua decisão,
verá que fica mais e mais fácil mantê-la, em qualquer circunstância. O convite
está feito. Mas lembre que isto deve ser
tomado como puro sádhana no dia a dia, e que deve servir como objeto de
observação de si próprio, a cada momento, para treinar e testar o seu nível de
consciência e a sua atenção, e ver como você reage ao seu próprio karma.
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