Vendo a impermanência, o “processo de contínua perda e criatividade do que existe”, por Joseph Goldstein
Retirado do Site:
http://dharmalog.com/2014/03/13/impermanencia-verdade-existencia-joseph-goldstein-meditacao/
A impermanência (anicca) não é um fato difícil de concordar
e de aceitar, pelo menos intelectualmente, mas é muito difícil de viver
percebendo e agindo de acordo com essa percepção. O professor de meditação
Joseph Goldstein (“Dharma, o Caminho da Libertação” e “A Experiência do
Insight”) diz que “o perigo, eu acho, em
qualquer tradição espiritual é permanecer no nível filosófico. As três
características (ele se refere aos três fatos da existência condicionada,
segundo a ciência budista: impermanência, sofrimento e não-eu) não são apenas
afirmações filosóficas sobre a natureza do universo; isto não é o que importa.
Elas são práticas”, diz ele, numa entrevista concedida à revista Inquiring
Mind numa edição do ano 2000, publicada e traduzida pelo site Acesso ao Insight.
E aí existe essa coisa estranha de praticar uma coisa que já
é. Diz Goldstein: “Existe um grande
paradoxo aqui, porque essas verdades são ao mesmo tempo, óbvias e ocultas. Elas
são óbvias quando fazemos o esforço correto para realmente despertarmos para elas
no momento presente e elas são ocultas quando nós, simplesmente, somos
carregados pelas energias do hábito nas nossas vidas”.
Na citada entrevista, Joseph Goldstein é perguntado sobre a
definição de impermanência, e o trecho da sua resposta segue abaixo. A
entrevista inteira está neste link, em português, e vale a pena, pois ele
também explica a relação entre a impermanência e as outras duas verdades
básicas da existência condicionada, o sofrimento ou insatisfação (dukkha) e o
não-eu (anatta).
A PRÁTICA DA
IMPERMANÊNCIA
Uma entrevista com Joseph Goldstein
Revista Inquiring Mind (edição 2000), tradução Acesso ao
Insight
Inquiring Mind: Como você descreveria impermanência?
Joseph
Goldstein: Impermanência é a verdade básica universal e
constante da mudança. Impermanência é, ao mesmo tempo, um processo contínuo de
perda, no qual as coisas existem e então desaparecem, e um processo contínuo de
renascimento ou criatividade no qual as coisas que não existem repentinamente
aparecem. Podemos ver isso momento a momento na meditação. Por exemplo, sons,
pensamentos ou sensações continuamente desaparecendo e novos surgindo. Podemos,
também, ver isso claramente em situações corriqueiras das nossas vidas. Onde
foi parar nossa experiência do café da manhã lá pelo fim da manhã? Onde ficou
aquela conversa que tivemos com um amigo, no dia seguinte? Algumas vezes,
estamos mais conscientes das coisas novas que estão surgindo, e outras, notamos
o seu desaparecimento. Mas, a mudança é sempre óbvia quando prestamos atenção.
Eu acho muito poderosa a prática de prestar atenção, momento
a momento, na experiência da mudança. Ao invés de somente ficar perdido no
conteúdo do que está acontecendo, é possível, simultaneamente, prestar atenção
ao fato de que a experiência está se alterando e fluindo. Isso não é uma coisa
tão difícil de se fazer, mas é mais difícil lembrar de fazê-lo.
Sermos capazes de manter essa perspectiva da natureza
transitória da experiência, mesmo quando estivermos passando por ela, ajuda a
aliviar a ansiedade na nossa mente. Daqui a seis meses, será que nos
lembraremos da raiva ou tristeza ou mesmo da alegria desse momento?
Isso não significa que não devamos ser sensíveis ou
responsáveis pelo que está acontecendo ao nosso redor, mas deveríamos sim olhar
com o entendimento de que tudo está sempre mudando. Nós sabemos dessa verdade
de forma abstrata, mas com frequência, não desfrutamos dessa sabedoria. O ponto
principal, realmente, é como usar a impermanência como um método para libertar
a mente.
I.M: Nós vemos
a mudança acontecendo ao nosso redor, mas não é ainda mais importante ver que
nós mesmos estamos mudando?
J.G: Esse
é um ponto importante. Ver impermanência não será tão eficiente se ainda
acreditarmos que o observador é sólido ou concreto. A consciência da
impermanência deve incluir o observador, nós mesmos, para que ela seja um lugar
de libertação real. Isso pode ser muito sutil. Poderemos até saber que nossos
pensamentos e sentimentos se mantêm mudando constantemente, mas será que
investigamos a exata natureza da nossa mente que sabe? O que é consciência, e,
ela é impermanente também? É claro que é fácil para mim, fazer estas perguntas,
sentado aqui enquanto converso com você. O desafio real é olharmos
profundamente e vermos por nós mesmos (ou não-nós mesmos).
I.M: S.N.
Goenka faz com que seus estudantes foquem na impermanência das sensações
físicas, como um meio de conscientizar que o observador está também em processo
de mudança.
J.G: Essa
é uma prática muito poderosa para muitas pessoas. E quanto mais for praticada,
mais a pessoa poderá ficar consciente ao longo do dia.
I.M: De que
outras formas podemos cultivar a habilidade de estarmos mais conscientes da
impermanência no nosso dia-a-dia?
J.G: Coloque
um grande aviso na geladeira: “Preste Atenção à Mudança”! (Risos) A consciência
da impermanência é completamente acessível o tempo todo. Acho que existe uma
crença enganosa nos círculos do dhamma, de que o insight profundo só pode vir
durante retiros intensivos. Eu aprecio verdadeiramente o que acontece nos
retiros, mas a natureza do mundo e a natureza das nossas mentes são exatamente
as mesmas se estivermos em retiro ou fora dele. Saia para uma caminhada, abra a
porta, ou mesmo movimente a sua mão. Impermanência está sempre ali. Note o que
acontece em cada simples atividade durante o dia. Sons, visões, sensações e
pensamentos estão continuamente mudando. Quanto mais notarmos isso, menos nos
agarraremos e nos apegaremos. Quanto menos agarrarmos e nos apegarmos, mais tranquilidade
e liberdade haverá na mente. É muito simples, embora, como meu primeiro
professor, Anagarika Munindra, sempre dizia: “Não é fácil”. Prestar atenção é
algo que temos de praticar.
I.M: Agora,
enquanto conversamos, você está com a atenção plena na impermanência?
J.G: Obviamente,
a maioria das pessoas, e eu me incluo, não vive continuamente num estado de
constante atenção plena na impermanência. Mas nós podemos ter a experiência
dessa verdade muitas vezes todos os dias. Mesmo agora, podemos perguntar, “Onde
ficou o início da nossa conversa? Onde ficou a experiência que tivemos quando
pusemos a fita no gravador?” Já desapareceram. A experiência se mantém fluindo
e mudando o tempo todo e o que estava aqui há trinta segundos atrás, já não
está mais aqui,. Acho isso realmente um pouco mágico, um pouco misterioso ter
essa consciência. Eu faço isso sempre que me lembro. Não é necessário nenhum
tipo especial de estado mental e está sempre acessível.
Uma imagem que gosto de usar é a de estar num cinema e ser
totalmente envolvido pela trama da estória. Então, de repente nos lembramos que
estamos assistindo a um filme e naquele momento a magia é quebrada. Essa é uma
boa analogia de como vivemos, com frequência : estamos completamente perdidos
num filme, mas nada substancialmente importante está realmente acontecendo.
I.M: Algumas
pessoas chamariam a sua afirmação de muito niilista. Você está dizendo que nada
está acontecendo aqui realmente?
J.G: Quando
digo que nada realmente está acontecendo, quero dizer que aquilo que está
acontecendo não é o que pensamos. Um exemplo comum utilizado na literatura
Budista é o de um sonho. O sonho está realmente acontecendo? Bem, está
acontecendo realmente como um sonho. Nossa delusão é que nós não sabemos que é
um sonho, então somos agarrados pela situação. Podemos fazer da nossa realidade
um sonho lúcido? Quando prestamos atenção à impermanência, isso nos ajuda a
acordar. Podemos também falar em termos de níveis absolutos e relativos de
realidade e da união dos dois. Podemos estar totalmente engajados no nível
relativo e ainda ter uma compreensão da perspectiva absoluta, da qual vemos a
natureza impermanente dos fenômenos. Só então, poderemos estar engajados na
experiência sem fixação e sem delusão. Ver a impermanência não implica numa
falta de empatia ou falta de vínculo. De fato, com a consciência da
impermanência existe muito menos uma noção de eu e outro, então uma pessoa pode
se sentir ligada num nível mais profundo. Se não estivermos identificados com
nenhum aspecto da experiência, incluindo a mente que sabe, então o que fica é a
compreensão da inter-relação básica, o um nascido do zero. Kalu Rinpoche
expressou isso tão claramente quando disse: “Nós vivemos na ilusão da aparência
das coisas. Existe uma realidade. Nós somos essa realidade. Quando entendemos
isso, vemos que não somos nada. E sendo nada, nós somos tudo. Isso é tudo”
I.M: A
verdade da impermanência está se tornando bastante aparente para a grande
maioria de membros da sangha ocidental que está entrando nos anos e notando a
impermanência nos cabelos, dentes e na força dos músculos. Quais são as suas
reflexões a respeito do processo de envelhecimento?
J.G: Acho
que ver a impermanência do corpo pode levar a uma das duas direções. Obviamente,
podemos sentir muito desconforto sobre a natureza decadente da nossa carne e
ossos, o que significa que ao mesmo tempo estamos identificados com o nosso
corpo. Se nos vemos sensíveis ao nosso envelhecimento, isso revela onde estamos
presos o que pode ser de grande ajuda no nosso processo de nos soltarmos disso.
Mas se observarmos nossa impermanência física com a compreensão de que o corpo
é desprovido de um eu, que ele é uma combinação de elementos básicos, então ver
sua natureza deteriorante pode ser libertadora. Tem sido de grande ajuda para
mim, lembrar que a mudança não é um erro. É assim que as coisas são. Portanto,
ao experimentar o envelhecimento do corpo, meu mantra se transformou em: “É
assim que as coisas são.” Emaho! (Que incrível!)